“Ah! Doutor! Doutor!… Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos… Era um pallium, era alguma coisa como clâmide sagrada, tecida com um fio tênue e quase imponderável, mas a cujo encontro os elementos, os maus olhares, os exorcismos se quebravam. De posse dela, as gotas de chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo antes de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como está, doutor? Era sobrehumano!…
(…)
Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais, quantos privilégios esse título dava! Pus-me a considerar que isso deveria ser antigo… Newton, César, Platão e Miguel Ângelo deviam ter sido doutores!
Foram os primeiros legisladores que deram à carta esse prestígio extraterrestre… Naturalmente, teriam escrito nos seus códigos: tudo o que há no mundo é propriedade do doutor, e se de alguma coisa outros homens gozam, devem-no à generosidade do doutor. Era uma outra casta, para qual eu entraria, e desde que penetrasse nela, seria de osso, sangue e carne diferente dos outros – tudo isso de uma qualidade transcendente, fora das leis gerais do Universo e acima das fatalidades da vida comum.”
RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA
Lima Barreto Fonte: http://briefingpolicial.blogspot.com/2011/03/genialidade-literaria-de-um-negro.html
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