Otavio Luiz Rodrigues Junior
“Tudo deve mudar para permanecer como está”
A ilha de Lampedusa é a porta de entrada de milhares de deserdados da vida, a maior parte de subsaarianos ou magrebinos, para a Europa. Em um ponto distante da costa siciliana, mais próxima até do Norte da África, a ilha transformou-se em símbolo das misérias da imigração internacional. Por uma dessas curiosas coincidências que convertem a vida em algo deliciosamente imprevisível, Lampedusa é também o gentílico de uma família aristocrática, cujo título foi criado no século XVII, quando reinavam em Espanha e em territórios do Sul da Itália os Habsburgo, na pessoa do rei Carlos II. No entanto, a origem da família Tomasi de Lampedusa é admitida como ainda mais avoenga, remontando a Bizâncio. O primeiro da linhagem foi Tomaso, comandante da Guarda Imperial bizantina e cognominado de “o Leopardo”.
Essas histórias de linhagens antigas podem não interessar muito ao leitor contemporâneo, mas o caso dos Tomasi de Lampedusa merece atenção: o último dos príncipes da dinastia – ao menos por direito de sangue – chamava-se Guiseppe Tomasi di Lampedusa, nascido em 1896 e falecido em 1957. Sua família já não possuía direitos sobre a ilha, vendida ao Reino de Nápoles em 1840, e o palácio ancestral do clã fora destruído em 1943 por um bombardeio aliado. Guiseppe tornou-se mundialmente famoso por um único livro: Il gattopardo, traduzido por O leopardo, uma menção cifrada ao primeiro dos Tomasi, o bizantino.
A obra foi transformada em filme por Luchino Visconti, ele próprio um membro da aristocracia italiana em decadência, com o título Il Gattopardo, com a participação de estrelas internacionais como Burt Lancaster, Alain Delon e Claudia Cardinale.
Tanto o livro quanto o filme deixaram para a cultura popular uma célebre frase da personagem central, D. Fabrizio Corbera, príncipe de Salina: “A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. Na versão popular, a frase ficou assim: “É preciso que tudo mude para que permaneça como está”.
Não é pretensão do colunista narrar o enredo do livro e do filme. Recomenda-se vivamente que se assista e leia a ambos. O essencial de se começar pela referência a Lampedusa e seu esplêndido livro está na possibilidade de se capturar as raízes do país cujo ensino jurídico terá hoje sua análise iniciada. Em Il Gattopardo, estão presentes os sucessivos momentos de conquista, ocupação e derrota de povos e de dinastias que dominaram o território italiano, desde o fim do Império Romano. Bárbaros, bizantinos, árabes, normandos, austro-espanhóis, franceses e austríacos, finalmente, a guerra civil entre as forças “modernas” em prol da unificação italiana e as forças do “passado”, representativas das pequenas monarquias, cidades-estado e territórios ocupados pelo Império Austro-Húngaro. A Itália moderna é uma ficção construída sob os escombros de um riquíssimo passado multicultural, que se fez com a imposição de uma língua comum, instituições monárquicas piemontesas (terra da dinastia de Sabóia, que liderou a unificação) e um profundo sentimento de perplexidade diante do novo.
De uma nação fragmentada em pequenos reinos, repúblicas e domínios austríacos, a Itália, na segunda metade do século XIX, formou-se de modo assustadoramente rápido e precisava de uma nova elite “nacional” em substituição a muitos que se recusavam a participar do novo regime ou que por ele não seriam aproveitados. Ao passo em que o movimento emigratório acentuava-se para as Américas, tendo sido o Brasil um dos destinos mais apreciados pelos italianos, as instituições da monarquia saboiana tentavam romper com os quistos de resistência feudal e eclesiástica (só totalmente resolvida após a Concordata de 1929), além dos movimentos carbonários e das forças de esquerda, que permaneciam na esperança da instauração da república.
Il Gattopardo deixa muito evidente esse problema ao narrar o convite feito ao príncipe de Salina para que integre o Senado da nova monarquia. D. Fabrizio, de modo polido, recusa o convite por se achar ligado a laços de lealdade com os “antigos soberanos da Sicília” e indica o ambicioso burguês que enriquecia à custa da nobreza decadente e cuja filha iria se casar com o sobrinho do príncipe, de modo a elevar seu status familiar.
Nesse cenário de transformação é que a universidade italiana, cujos vínculos com a Igreja e com as monarquias locais, vai-se convertendo em um celeiro de nomes para a Itália pós-Ressurgimento.
Uma universidade em (trans)formação
Alguns exemplos dessa mudança de perfil e de natureza jurídica das universidades italianas podem ser mencionados. A Universidade de Roma La Sapienza, no ano de 1870, perdeu seu título de instituição pontifical e passou à condição de universidade real. Considerada a mais antiga de entre as universidades, Bolonha experimentou uma trajetória diferente, graças a seus vínculos com o Sacro Império Romano-Germânico, que lhe permitiu ter recebido uma constituição imperial de Frederico Barba-Ruiva, de 1158, por meio da qual passou a ter imunidade e autonomia de pesquisa em face de poderes temporais ou espirituais. Em Veneza, a Università Venezia Ca’ Foscari tem uma história diferente, mais proximamente ligada à formação do novo Reino da Itália. Criada em 1868 como Real Escola Superior de Comércio, teve como seu primeiro diretor o economista Franceso Ferrara.
Em Nápoles, a Università degli Studi di Napoli Federico II, cujo nome lembra os equivalentes alemães, que unem o topônimo e a homenagem a um monarca, é herança dos tempos imperiais, fundada que foi em 1224 pelo soberano do Sacro Império e rei de Nápoles, Frederico II. Sua origem romano-germânica deu-lhe foros de instituição laica desde sua fundação. Depois de um período de longa decadência, a universidade aproximou-se da Igreja até que, com os efeitos da substituição dos Habsburgo pelos Bourbon no domínio de Espanha e dos territórios italianos, ela ganhou novos ares. Como todas as instituições universitárias peninsulares, após a unificação a Frederico II teve de se adaptar aos padrões uniformes da monarquia dos Saboia.
A Universidade e a construção do Estado italiano moderno
Independentemente da origem, as universidades italianas, com a consumação do projeto unificador, tornaram-se uma peça importante para os governos reais. Novos espaços foram abertos para jovens de classes menos favorecidas e que só encontravam na Igreja um caminho de ascensão social por meio das letras. No entanto, diferentemente do que se operou na Alemanha ou, em menor escala, em Portugal, não se pode afirmar que houve um movimento constitutivo de uma “classe dos mandarins”. A nobreza italiana ainda serviria por muito tempo nos serviços burocráticos de maior relevo, como a diplomacia, a administração provincial e as finanças públicas, além, é claro, de seu clássico papel no oficialato.
A Itália, porém, foi sede de um curioso processo de nobilitação de amplos setores que contribuíram para a unificação. Vitório Emanuel, primeiro rei da Itália moderna, antigo soberano da Sardenha, do Piemonte e da Saboia, precisou de todos os apoios para combater seus antigos colegas monarcas, os austríacos e as forças papais. Quando não conseguiu a adesão de parte da nobreza local, aliou-se a segmentos burgueses com a promessa de futuro exercício de poder regional. Até mesmo setores do operariado, carbonários e revolucionários internacionais, como Giuseppe Garibaldi, mereceram boas vindas, ainda que temporárias. Os sobreviventes e os que não foram posteriormente descartados, como Garibaldi, passaram à linha de frente na burocracia e nas forças armadas do Reino. A nobilitação foi uma importante arma de cooptação de burgueses e membros das classes médias e baixas que auxiliaram no esforço de guerra e na consolidação política do regime.
Surgiu, desse modo, uma nobreza ad hoc, que, em larga medida, não incomodava os aristocratas de cepa, seja porque os não destruídos no processo de unificação seriam aproveitados pelo regime, ou porque sua soberba não permitia que eles se molestassem com os novos convidados para a festa do poder. Para estes últimos, só uma família com raízes nos tempos das Cruzadas seria verdadeiramente digna de ser tida como nobre.
Nesse cenário, uma nobreza universitária era secundária e, muita vez, vinha acompanhada de um título não acadêmico, como o de comendador ou cavaleiro, nada elevados na hierarquia nobiliárquica. Diversamente da Alemanha, o docente universitário italiano almejava esses títulos.
Nos séculos XIX-XX, muitos professores italianos gozaram de renome internacional em razão do prestígio do Direito Romano, cujo estudo havia “renascido” na Alemanha, e também pelo contato com os alemães, o que permitiu a “contaminação” da literatura jurídica italiana pelo Direito alemão e a tradução dos clássicos do século XIX para um idioma mais acessível ao público latino. A vocação comparatista italiana favoreceu também a que os juristas peninsulares fossem mais abertos às experiências estrangeiras (algo até hoje raro em relação aos germânicos) e que a Itália pudesse exercer uma influência maior sobre outros Direitos, como é o caso de Portugal, Espanha, Romênia e América Latina.
No plano interno, vê-se a adesão de grandes juristas da segunda metade do século XIX ao projeto de Itália unificada. Carlo Fadda (1853-1931), professor da Universidade de Nápoles, foi designado senador do Reino por Vitório Emanuel em 1912. Nascido na Sardenha, território regido pelos Sabóia, é revelador que Fadda tenha feito sua carreira em uma universidade do Sul (que resistiu à unificação), o que diz muito sobre a importância dos docentes para a nova Itália. O título senatorial reforça o argumento da busca por uma legitimidade extrauniversitária. Pode-se, ainda, mencionar a ligação teuto-italiana no campo do Direito com o fato de Carlo Fadda ser relativamente conhecido no Brasil por sua tradução da obra de Bernhard Windscheid, mais conhecida por seu título em italiano Diritto dela Pandette, do que pelo original alemão Lehrbüch des Pandektenrechts. A maioria dos manuais brasileiros do século XX, escritos por não germanófonos, cita a versão italiana do clássico de Windscheid.
Ao lado de Fadda na tradução da obra de Windscheid, é necessário citar Paolo Emilio Bensa (1858-1928), genovês e catedrático da Universidade de Gênova. Fluente no alemão, Bensa também foi nomeado, em 1902, para o senado do Reino da Itália, em uma trajetória muito similar a de seu colega da Universidade de Nápoles.
Outro exemplo desse momento histórico é Giovanni Pacchioni (1867-1946), um civilista que os alunos veem associado às teorias sobre a natureza da obrigação. Professor de Direito Romano em Camerino, também lecionou em Innsbruck e em Turim, Pacchioni simboliza o caráter cosmopolita de muitos juristas do final do século XIX e o quão útil para esse fim poderia ser a universidade.
Os judeus também encontraram na universidade um espaço para desenvolvimento profissional e com menos percalços do que em outras áreas do serviço público, ao menos até à ditadura fascista.
A Primeira Guerra Mundial foi particularmente trágica para a Itália. O Exército Real, com apoio naval inglês e, posteriormente, da infantaria norte-americana, foi pessimamente dirigido pelo marechal de campo Luigi Cadorna em sua luta contra o Exército Real e Império austro-húngaro. O desastre de Caporetto, batalha na região do Vêneto em 1971, quase pôs a perder a monarquia italiana e ceifou a vida de milhares de jovens soldados e oficiais.O pós-Primeira Guerra trouxe crise econômica e instabilidade política para a Itália, que se viu nas mãos de um carismático jornalista chamado Benito Amilcare Andrea Mussolini, que viria a governar o país como ditador a partir de 1922.
O regime fascista exerceu, como nunca antes, um papel de enorme preponderância no meio universitário. As ligações com a Áustria e a Alemanha, que nunca deixaram de ser fortes, de modo especial com as universidades do Norte da Itália, foram reforçadas com a ascensão do Nazismo. Muitos catedráticos italianos se dividiram após o fascismo, sendo notáveis os casos de resistência à ditadura ou de adesão servil ao totalitarismo.
É muito citado o exemplo do romanista Edoardo Volterra (1904-1984), professor em diversas universidades (Cagliari, Camerino, Pisa, Bolonha e Roma), que foi colocado em disponibilidade após as leis raciais de 1938 em razão de ser judeu. Após seu afastamento da cátedra na Itália, lecionou no Egito, na França e no Brasil. Voltou a seu país em 1940, já em plena Segunda Guerra Mundial, e foi preso em 1943 sob acusação de militar contra o regime fascista. Pegou em armas contra o fascismo e lutou como partigiano (guerrilheiro) atrás das linhas alemãs. Com várias condecorações por bravura e por sua atuação na resistência, foi designado juiz da Corte Constitucional em 1973.
Muitos juristas vincularam-se ao fascismo, como Betti e Del Vecchio, mas é interessante citar Pietro De Francisci (1883-1971), que foi professor catedrático de Direito Romano na Universidade de Roma, ministro da Justiça e da Graça no governo de Mussolini. Com a queda do fascismo, De Francisci foi exonerado de suas funções universitárias, até que Volterra, homem forte na Itália democrática, que havia sido orientando de Pietro Bonfante juntamente com De Francisci, lutou por sua reintegração à universidade. Um gesto de raríssima nobreza.
Finda a guerra, a universidade e, em particular, os professores de Direito, tenderam a acompanhar a viragem republicana. Ocupada pelas forças aliadas, de entre as quais as brasileiras, a Itália submeteu-se a um referendo e fez a opção pela república, extinguindo a curta experiência monárquica de menos de um século (1861-1946).
O segundo pós-guerra foi doloroso para a República Italiana. Fome, destruição do parque industrial, instituições em frangalhos e outras misérias marcaram o renascimento da antiga aliada Alemanha no Eixo Roma-Berlim-Tóquio. A reconstrução deu-se por meio do equilíbrio tênue entre socialistas e democratas-cristãos, com a força nada desprezível do Partido Comunista. Na década de 1960, o país conseguia se recuperar, graças também a maciços aportes do Plano Marshall, ao passo em que as universidades sofreram com a onda revolucionária estudantil do final de década. Em um exemplo que nunca deve ser esquecido de arrogância e de intolerância, nomes como Norberto Bobbio foram expulsos da universidade pelos alunos e encerraram suas carreiras universitárias.
Em relação ao Direito, nesse período, deu-se o reforço na universalização do acesso ao ensino superior. No Direito, não havia uma pós-graduação com o sentido atual. O bacharel em Direito era um dottore, título que até hoje os advogados usam, assim como no Brasil, mesmo sem o título de doutor. Exigia-se dos graduandos a apresentação de uma “tese de láurea”, uma espécie de trabalho de conclusão de curso. Aqueles que desejavam seguir a carreira universitária, deveriam se submeter a um exame de habilitação (equivalente a nossa livre-docência, mas que seria, em verdade um doutorado). As mudanças ocorreram no final dos anos 1960 e pode-se destacar a grande reforma da autonomia universitária nos anos 1990, com a Lei Ruberti 341/90, e, mais recentemente, a polêmica Riforma Gelmini, um conjunto de normas aprovadas no governo de Silvio Berlusconi, de 2008 a 2010, que alterou o ensino, a estrutura e as carreiras docentes universitárias.
A universidade italiana hoje vive uma profunda crise, com cortes de recursos para centros de pesquisa, bibliotecas e bolsas, o que se deu no rescaldo da situação econômica europeia pós-2008.
Fonte:
http://www.conjur.com.br/2015-mar-25/direito-comparado-produz-jurista-modelo-italiano-parte
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