Professor Marcos de Araujo e a Síndrome de Gabriela II

Você tem que tomar uma decisão. Seu filho necessita realizar uma cirurgia de alto risco. Há na rede pública profissional comprovadamente bem formado, especialista com histórico bem sucedido neste tipo de cirurgia com vários cursos na área. Há outros bem intencionados, mas que pelas circunstancias não realizaram especializações complementares. Havendo possibilidades quem você escolheria?

A resposta parece óbvia, pois quanto mais bem preparado for o profissional melhores serviços estará habilitado a prestar. Razoável o raciocínio? Não para as “autoridades” que insistem em enxergar a Polícia como braço armado do Estado e não como órgão capaz de construir relacionamento de cooperação com a sociedade para focar suas ações na solução dos problemas locais. Para o primeiro caso quanto menos estudo o policial possuir, melhor. Mark Harrison Moore em sua obra “Policiamento comunitário e policiamento para a solução de problemas” enfatiza que o policiamento para a (re)solução de problemas, também conhecido como policiamento orientado para o problema (POP), “é uma estratégia que tem como objetivo principal melhorar o policiamento profissional, acrescentando reflexão e prevenção criminal”.

Refletir implica autonomia intelectual que perpassa por um processo de autoformação. Para os manipuladores os “reflexivos” são indisciplinados, questionadores e ameaçadores da “ordem” por eles estabelecida. Polícia com nível superior? Isso é coisa de país que não tem o que fazer. Por aqui não temos que nos preocupar com homicídios em série, com terrorismo, narcotráfico, pedofilia, xenofobia, homofobia, contrabando, tráfico de armas, corrupção e outros “delitozinhos” sem maiores repercussões. Hum, para quê curso superior?

Nesse diapasão o Plenário do Tribunal de Contas surpreendeu o Governo do Distrito Federal ao determinar à sua Polícia Militar que se abstenha de ultrapassar a fase de inscrição no concurso público, até que o Tribunal delibere sobre o mérito da questão debatida nos autos. O cerne do imbróglio gira em torno da legalidade da exigência de nível superior para a admissão de praças pela PMDF.

A decisão foi provocada pelo Ministério Público que atua junto àquele órgão. O relator sugere que há inexistência de lei, em sentido formal, que regulamente a matéria e sinaliza possível colisão com a regra estabelecida na Constituição Federal. Complicado entender o mundo jurídico. Com um mesmo argumento você pode fundamentar um sim ou um não, a opção dependerá a quem se quer atingir.

Dizer que inexiste lei que regulamente a matéria é ignorar a existência do artigo 11 da Lei 7289/84 que estabelece:

Art. 11. Para matrícula nos cursos de formação dos estabelecimentos de ensino policial-militar, além das condições relativas à nacionalidade, idade, aptidão intelectual e psicológica, altura, sexo, capacidade física, saúde, idoneidade moral, obrigações eleitorais e, se do sexo masculino, ao serviço militar, é necessário aprovação em testes toxicológicos, bem assim a apresentação, conforme edital para o concurso, de diploma de conclusão do ensino médio ou do ensino superior, reconhecido pelo Governo Federal. (Redação dada pela Lei nº 11.134, de 15 de julho de 2005). Grifei

O artigo 5º, XIII da CF/88 preceitua que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Este inciso contém uma norma constitucional de eficácia contida. Exemplificando, hoje para ser pedreiro, jardineiro, pintor, com o devido respeito que estas profissões merecem, não há exigências legais como para o advogado, médico ou engenheiro. Porém, a lei, no futuro, pode estabelecer requisitos para aquelas profissões. Exigir que para ser pintor tenha curso superior com aprovação na Ordem dos Pintores do Brasil. Por isso é de eficácia contida ou restringível. São aquelas normas que produzem a plenitude dos seus efeitos, mas pode ter o seu alcance restringido.

Segundo o magistério de Michel Temer, estas normas têm aplicabilidade direta, imediata e integral, mas o seu alcance poderá ser reduzido, ou em razão da existência, na própria norma, de uma cláusula expressa de redutibilidade ou em razão dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Enquanto não materializado o fator de restrição, a norma tem eficácia plena.

Exatamente o que ocorreu com o ingresso na PMDF. A cláusula expressa de redutibilidade foi a exigência, legal, do diploma do curso superior para a matrícula no curso de formação. Não possibilitar a mudança seria o mesmo que lutar para permanecer com a exigência da 4ª série para o ingresso, como já foi no passado.

Ainda assim, levemos em consideração que surja o argumento de que as tarefas executadas pela praça não são de nível superior. Este argumento também não se sustenta, pois neste caso está se confundindo requisito para ingresso com atribuições de tarefas. Observe que as funções do oficial são de nível superior, no entanto para o seu ingresso, até agora, foi exigido o nível médio. Como integrante da Corporação, na Academia de Polícia Militar, que ele cursará o nível superior.

Lembre-se que para ser agentes de polícia civil, polícia federal e do Detran, exige-se o nível superior, porém suas funções são de nível médio. E a população só teve a ganhar. Não é por acaso que as Polícias Federal e Civil do DF atingiram índices de excelência.

Não há outro caminho para melhoria que não passe pela educação. O salto quântico de qualidade que a Polícia se prepara tem incomodado alguns. Por que será? Melhoria perpassa por exigências para resistir às tensões da sociedade moderna.

Melhoria reclama excelente corpo docente – o Ministério da Justiça tem investido no profissionalismo da segurança pública por meio do Ensino à distância – EAD e outros investimentos. O DF cônscio de sua importância no cenário da segurança pública inova e investe na gestão de recursos humanos. Em complemento a esses entendimentos, foi baixado o Decreto nº 29.272, de 16 de julho de 2008, que estabelece na PMDF diretrizes para as atividades formativas e para a educação profissional, constituindo-se a Matriz Curricular Nacional e a Matriz Curricular em Movimento, documentos pedagógicos elaborados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, referências para a corporação na orientação das atividades formativas, inclusive na busca de parcerias com as instituições de ensino superior, com vistas ao desenvolvimento de projetos voltados para a segurança pública.

Melhoria reclama excelência no corpo discente – isso se consegue com uma seleção rigorosa. A vida humana é um bem imensurável. É razoável que o profissional que a preserva esteja alinhado com esta visão.

Melhoria reclama excelência no ambiente. O pesquisador tenente coronel Marcos Antonio Amaro, da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, autor do livro “Arquitetura Contra o Crime”, lançado em 2006, elenca características que por vezes facilitam ou induzem à prática de delito. A arquitetura do local de trabalho dos profissionais de segurança pública também influencia na prevenção. O nível de escolaridade está diretamente relacionado com estas questões.

Será que teremos de conviver com a síndrome de Gabriela por mais tempo? Que tal perguntar à população do DF que polícia ela prefere?

Marcos de Araújo é Mestre em Ciência Política; Pós-graduado em direito, especialista em segurança pública, direitos humanos e política Criminal pela Faculdade Farias Brito – FFB-CE e pela Escola de Gestão Pública do DF; especialista em gestão estratégica em segurança pública pela Academia de Polícia Militar de Brasília – APMB; Professor de Direito Constitucional, Penal e Administrativo na APMB; Major QOPM da PMDF e Comandante da 3ª Companhia de Polícia Militar Independente.

A própria lei faculta ao administrador optar pelo nível de escolaridade médio ou superior. Peço desculpas ao leitor para apoiar meu argumento no mundo do Direito. Tentarei não ser tão chato…