Antonio Silvio Curiati
– Arnaldo?
– Sim.
– É o Alceu. Como vai?
– Eu estou bem, Alceu, e você? E aí? Vai ter outro estrogonofe na sua casa?
– Não. Desta vez não é por isso que estou ligando. Preciso muito falar com você, sobre uma tragédia que me aconteceu. Se não desabafar com alguém, explodo.
– Pois fale! O que há?
– Prefiro falar pessoalmente. Que tal hoje à noite, no local e horário de costume?
– Então está bem. Até mais.
Alceu, de tão ansioso, chegou cedo e pediu mesa na calçada, pois nesse dia acendera um cigarro no toco do outro e não tinha intenção de parar tão cedo. Para completar, pediu uma boa dose de uísque com gelo e ficou nervosamente à espera do amigo, alternando os goles e as tragadas.
Arnaldo não tardou a aparecer, também ansioso para saber o que estava acontecendo.
Cumprimentaram-se e Arnaldo, nem bem sentou, fuzilou-o:
– Desembuche logo, homem!
Alceu pôs uma fisionomia de extrema preocupação, deu uma tragada profunda que reteve por longo tempo, soltou-a vagarosamente, tomou um generoso gole de uísque, encarou bem Arnaldo e arrematou:
– Meu filho é um viciado!
E aprendeu com quem???
Revendo premissas
A pergunta, inesperada, não faz parte desse diálogo fictício, cujas circunstâncias são atuais e poderiam ter acometido qualquer um. Visa apenas abrir caminho para a reflexão que se segue, onde a questão das drogas é examinada à luz de pontos de vista pouco comuns, a serem agregados às discussões habituais, ampliando-as. O tema é complexo e de solução ainda longínqua.
Drogas lícitas e ilícitas
A sociedade só vai conseguir efetividade no combate às drogas ilícitas quando começar a combater as drogas lícitas (uso indiscriminado de fármacos psicotrópicos e de supressão sintomática, álcool, tabaco, café e outros produtos cafeinados, cacau e derivados, açúcar refinado, adoçantes artificiais etc.).
As crianças tornam-se dependentes de boa parte dessas substâncias ainda em casa, em contexto afetivo, como se fossem algo natural e saudável. Quando, já crescidas, acabam vítimas de traficantes de drogas ilícitas, estão apenas mudando de fornecedor, em busca de sensações mais intensas do que as obtidas das drogas lícitas. A relação de dependência é exatamente a mesma exercitada a vida toda com estas. Não estivessem o organismo e a alma já com a sensibilidade tão embotada pelo seu uso e pela alimentação qualitativamente ruim, na maioria das vezes rejeitariam de pronto as drogas ilícitas, por meio de intenso mal-estar.
Quando os pais chegam à terrível constatação de que um filho é viciado em drogas ilícitas, há, portanto, de fazer a pergunta: e aprendeu com quem? Pois as drogas lícitas foram usadas desde o berço, com o aval e estímulo da família e da sociedade, preparando o terreno para as outras…
A análise transacional, o vício em drogas e o script da falta de alegria
É muito interessante a tese apresentada pelo psiquiatra americano Claude Steiner no livro Os Papéis que Vivemos na Vida, Ed. Artenova (a versão impressa está fora de catálogo e só é encontrada em sebos, mas o texto está disponível para download na internet), onde aborda a questão do ponto de vista da análise transacional. Ele atribui o vício em drogas, quaisquer que sejam elas, ao script da falta de alegria. A droga é a maneira, ainda que fugaz, de a pessoa se reconectar à capacidade de se alegrar, perdida devido aos condicionamentos recebidos da educação e da convivência social.
O cerne da questão
Nessa linha de raciocínio, o ponto central da questão das drogas é o seguinte:
A partir do momento em que o indivíduo lança mão de substâncias – sejam lícitas ou ilícitas – para suportar circunstâncias de vida adversas, opressivas, sem sentido e pouco significativas, deixa de atuar para modificar essas situações, que, em virtude da inação, vão se tornando cada vez piores e exigindo mais e mais doses das substâncias para serem suportadas, até que estas não mais fazem efeito e o usuário tem de buscar um upgrade, num crescente sem fim para obstar o contato com as percepções interiores, que sinalizam desconforto. Esse processo necessariamente desemboca nas drogas ilícitas.
Legalizar resolve?
Quando se fala em legalizar drogas, dever-se-ia falar em legalizar mais drogas, porque já há muitas de uso corrente, lícitas e tributadas, sem que isso tenha o condão de lhes retirar a condição de drogas e tampouco a perniciosidade. Tanto quanto as drogas ilícitas, as drogas lícitas também geram dependência, e a sua privação igualmente provoca síndrome de abstinência.
Pode-se defender a legalização de drogas com base em inúmeras razões, como se vê nas discussões públicas a respeito, mas defendê-la a pretexto de serem gerados impostos é raciocínio falacioso. Será sempre mau negócio para a sociedade, porque a arrecadação nunca vai compensar os efeitos deletérios, propagados em cadeia no seio dessa mesma sociedade.
O fenômeno é bem evidente no caso do álcool e do tabaco, atingindo dimensões astronômicas quando se associam: o álcool restringe a capacidade de discernimento, embotando decisivamente a consciência; já a nicotina inibe o contato dessa mesma consciência com as percepções interiores, desabilitando o mecanismo natural de feedback que nos poderia defender. O resto é consequência…
Para quem quiser constatar pessoalmente, basta observar, em qualquer aglomeração pública, a impressionante quantidade de jovens com bebida alcoólica em uma mão e cigarro na outra. Parece um arrastão!
Hábito e vício
O que é o vício?
Por mais perturbador e reducionista que pareça, o vício é tão somente um mau hábito, um hábito que nos prejudica. A natureza inercial é comum a ambos, fazendo com que perdurem indefinidamente, seja para o mal ou seja para o bem, a menos que haja forte intervenção consciente, portanto partindo de dentro para fora.
Devido a essa natureza inercial, costuma ser fadada ao fracasso toda tentativa de se livrar de vícios reprimindo-os, obstando-os. Qual a solução, então?
Ora, o ser humano é a somatória de hábitos, e hábitos podem ser modificados. Quando queremos abandonar maus hábitos, a medida mais efetiva é desenvolver bons hábitos que atuem em sentido contrário. É como combater fogo com fogo.
De outra forma, apenas ficamos brincando de gangorra: reprimimos o vício por algum tempo, e depois cedemos e voltamos a ser conduzidos por ele, numa alternância sem fim, intensificadora e extremamente desgastante, quando não letal.
Observem que não se fez qualquer menção a caráter, pois o mau hábito não corrompe de forma permanente a essência humana mais profunda, que continua íntegra e aflorará ao ser suficientemente estimulada pelo cultivo de bons hábitos, desde que haja tempo hábil para isso (em se tratando de consumo de drogas, é também indispensável a completa desintoxicação orgânica). Portanto, não importa o quanto alguém se haja prejudicado, sempre é hora para recomeçar.
Muito raramente, porém, recebemos esse tipo de orientação da família, da sociedade ou da educação formal. Pedem-nos determinado comportamento, mas não nos ensinam a lográ-lo! Habilitando as pessoas a bem manejar seus instrumentos de manifestação no mundo (o corpo e a mente), o resto elas poderão fazer sozinhas, uma vez educadas para a independência e a autonomia, e não para a dependência e a submissão.
Como não somos treinados para colocar corpo e mente trabalhando a nosso próprio favor, quem quiser descobrir o melhor e mais efetivo para o seu desenvolvimento pessoal deve ter a disposição de buscá-lo por si, até que esses ensinamentos estejam disponíveis e sejam corriqueiros nas esferas “oficiais”.
A síndrome de abstinência
Assim se denomina o processo pelo qual passa o usuário de qualquer tipo de drogas quando delas se abstém.
Para conviver com a intoxicação provocada pelas drogas, o organismo necessita se adaptar e cria mecanismos para isso, de modo a permitir que a prioridade maior – a sobrevivência – ocorra. Uma vez eliminada do sistema a fonte de toxicidade, as adaptações tornam-se desnecessárias e passam a representar dispêndios injustificados de energia, sendo por isso desmobilizadas e o organismo reconduzido à condição pré-drogas, por meio de intensa depuração (o que gera os sintomas).
Portanto, a síndrome de abstinência é algo positivo e que indica estar em curso a regeneração orgânica. É desconfortável, em especial nas primeiras três semanas de privação, mas o bem-estar final é compensador! Além disso, após alguns meses possibilita a redescoberta de um mundo pleno de percepções sutis e de nuances inusitadas.
Trabalho, consumo e tráfico de drogas
Ensina o sociólogo polonês Zygmunt Bauman que, até passado recente, o eixo da sociedade girava em torno do trabalho, e daí em geral provinha o dinheiro para os atos de consumo. Nos dias atuais esse eixo gira somente em torno do consumo, e o problema é que para consumir não se necessita de trabalho, necessita-se de dinheiro, não importa de onde venha e como seja obtido.
Esse é fator relevante para a compreensão do aumento exponencial da criminalidade, e, dentro dela, do tráfico de drogas. Em uma sociedade em que a opressão ao cidadão é brutal, e em que as perspectivas econômicas são muito restritas frente à volúpia de consumo, vai-se buscar o dinheiro aonde e como for preciso.
O consumo como paradigma, a educação precária e o reflexo na criminalidade
Em setembro de 2013, na posse dos novos membros da Comissão de Política Criminal e Penitenciária, a Seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil divulgou números impressionantes:
No Estado de São Paulo, 75% da população carcerária têm menos de 25 anos de idade, sendo que 66% cumprem condenação por tráfico de drogas ilícitas. Também se constata o aumento do envolvimento de adolescentes com a prática de atos infracionais, especialmente o tráfico, pois grande número deles é do litoral e do interior, revelando ineficiência das políticas de inclusão social desenvolvidas nos municípios, que parecem crescer de modo desordenado e sem planejamento.
Não é mera coincidência essa predominância absoluta de jovens na população carcerária. São justamente os nascidos e crescidos sob o primado do consumo como fim em si mesmo, sem outros referenciais. Estes poderiam ter vindo da educação, se esta não fosse tão precária.
Recente pesquisa do IBOPE constatou que 38% dos egressos do ensino universitário no país são analfabetos funcionais, indicando que o investimento feito na sua educação foi inócuo, ineficaz. Ora, quem saiu da universidade nessa condição assim transitou por toda a cadeia educativa. A deficiência começa no ensino básico, e depois é praticamente impossível supri-la.
Legislação – realidade ou ficção?
No Brasil vivemos situação ficcional, porque se parte da ilusão de que é possível mudar a realidade a partir de leis, e não o contrário. Com o Plano Cruzado, em 1986, iniciou-se ostensivamente a prática de fazer do ato legislativo instrumento demagógico, arruinando a organicidade do ordenamento jurídico, que se transformou em desordenamento e já está muito próximo do caos absoluto.
Isso nos conduziu a surrealidades como a elevada insegurança jurídica detectada no país, devidamente reconhecida e listada entre os componentes do chamado custo Brasil, apesar de formalmente vivermos sob estado de Direito. Segundo estimo, a manutenção das estruturas para conviver com tal situação, e com toda a infindável burocracia dela derivada, consome 30% do PIB. Pelo menos outros 35% são consumidos pela voracidade tributária (sem qualquer contrapartida efetiva ao contribuinte), que, além de ficar com todo esse montante, ainda condena o cidadão a gastar o tempo e o dinheiro de que não dispõe para atender às infindáveis obrigações associadas. E talvez mais 25 a 30% são consumidos para obter os serviços que se deveria receber em função da elevada carga tributária, mas que ou não são prestados ou o são de forma deficiente e insatisfatória. Quem se der ao trabalho de fazer as contas, verá que a sobra é irrisória para fazer o país funcionar!
Outra ficção são os números sobre a ascendência de parcelas cada vez maiores da população à classe média. Esse artifício somente é possível por meio da manipulação do conceito de classe média. Para quem viveu e conheceu o que se entendia por isso nos anos setenta do século passado, o que se chama hoje de classe média não passa de piada, e de muito mau gosto.
Então, boa parte da população brasileira padece de carências básicas, estruturais, que lhe escravizam totalmente ao imperativo da subsistência. O país se tornou um aglomerado humano exaurido. E isso tem algumas decorrências, como veremos a seguir.
A pirâmide de Maslow
Abraham Maslow, psicólogo comportamental norte-americano notabilizado pela criação do modelo mundialmente conhecido como pirâmide de Maslow, com aplicação em todas as áreas da experiência humana, demonstrou que as necessidades mais sutis somente podem ser percebidas e atendidas após a percepção e atendimento das mais materiais, ainda que todas tenham sempre existido desde o princípio da condição humana e sejam igualmente necessárias para o desenvolvimento da espécie.
Significa que, enquanto perdurarem as carências básicas, não há como pretender que a população se volte a sutilezas e encontre perspectivas de longo prazo.
O Direito Penal, a coerção, a corrupção e o crescimento da população
Todo o edifício do Direito Penal assenta-se na possibilidade de o Estado exercer coerção por meio da pena. Quando, devido às realidades antropológica, sociológica, psicológica e econômica, o indivíduo não tem mais perspectivas e já não tem o que perder, não há coerção possível. E, ao mesmo tempo, ele se torna potencialmente corruptível.
O aumento exponencial da população carcerária demonstra à saciedade como o Direito Penal está perdendo a capacidade de coerção. Aumentar a infraestrutura judiciária no mesmo ritmo será sempre paliativo a combater efeitos, e, a menos que também se combatam as causas da criminalidade, podemos dizer que a sociedade brasileira está a padecer de doença autoimune: consome todos os recursos para se defender de si mesma.
Há só um caminho para resolver o problema na origem: investir em educação, cultura, saúde, habitação, infraestrutura etc., mas nunca há o suficiente, em virtude do estratosférico montante dissipado pela corrupção generalizada, epidêmica, e também porque a população é bem maior do que se divulga, e segue crescendo a passos largos…
A necessidade vital humana de introspecção
Ao longo dos séculos, a cultura oriental vem-se dedicando predominantemente ao desenvolvimento da vida interior ou da alma, enquanto a cultura ocidental vem-se dedicando predominantemente ao desenvolvimento da vida exterior ou material. À primeira vista contraditórias, ambas as correntes são, na verdade, aspectos mutuamente complementares e indispensáveis à plena manifestação humana.
Essa unilateralidade mergulhou a civilização ocidental nos aflitivos tempos atuais, em que a vida interior, já há tanto negligenciada, converteu-se de vez em terra de ninguém: rincão árido, inacessível e impermeável a qualquer clamor, do qual todos procuram fugir com o instrumento que esteja à mão.
O padrão de educação vigente pouco contribui para amenizar esse quadro, quando não o agrava, tornando impossível encontrar sentido em uma vida cotidiana patologicamente competitiva, violenta, estressante e neurotizante, e ainda convertida pelo obtuso senso comum e predominância quantitativa em referência de normalidade e naturalidade… O estilo de vida contemporâneo ocidental pode ser normal, no sentido de acometer a grande maioria da população, mas está muito longe de ser natural ou sadio.
Todos os problemas, e também todas as soluções, estão na vida interior. O ser humano é, na natureza, o mediador entre a vida exterior e a vida interior. Esta é absolutamente necessária para o equilíbrio e a manifestação contextual do indivíduo no mundo exterior. Para que haja saúde em sentido pleno, a consciência precisa viver constantemente nesses dois âmbitos, interior e exterior.
Jung e o conceito de sombra
Nós, seres humanos, somos como icebergs: quando muito, dez por cento de nossa totalidade está aflorada, exposta, emersa, consciente. Os outros noventa por cento estão latentes, ocultos, imersos, inconscientes. Portanto, a maior parte da nossa vida ocorre de forma inconsciente. A essa parcela oculta Jung denominou sombra. Para ele, a sombra se manifesta por meio de três vertentes principais: as enfermidades, as circunstâncias de vida e os filhos.
Se é por meio da vida interior que tomamos contato com a sombra, e se esta constitui a parcela majoritária do indivíduo, deveríamos desde a mais tenra infância aprender a lidar com ela, como ocorre no oriente. Mas, além de não recebermos qualquer treinamento nesse sentido, tornando o contato sempre ameaçador, nesta sociedade tudo conspira o tempo todo para sonegar o quinhão de introspecção de que necessitamos para reconhecer o que de fato diz respeito à vida e nos liberta, e diferenciá-lo de tudo quanto apenas nos escraviza e nos transforma em meras engrenagens de um sistema que, não importa o que ou o quanto façamos, jamais se satisfaz ou nos contempla.
Ócio, ocupação e vida interior
O sociólogo italiano Domenico De Masi desenvolveu o conceito de ócio criativo, que infelizmente tem sido mal interpretado. Diz ele que a criatividade é impossível sem algum ócio. Porém, ócio aqui não significa estar desocupado, mas apenas que o grau de ocupação não consome absolutamente todo o tempo disponível, permitindo à pessoa respirar, refletir um pouco e observar a si mesma.
Não é preciso dispor de todo o tempo do mundo para a vida interior, mas há um mínimo necessário, sem o qual não há como se reabastecer nas fontes da vida e manifestar em plenitude a condição humana.
As drogas virtuais
Tudo aquilo que não seja substância material e que, de alguma maneira, impeça a atenção de se voltar para dentro, para o interior, é o que, neste contexto, denominamos drogas virtuais. Mesmo não sendo substanciais, são perniciosas, provocam dependência e também ocorre síndrome de abstinência quando nos privamos delas.
Mais adiante são comentadas algumas modalidades de drogas virtuais, procurando mostrar como cada uma contribui para exaurir o indivíduo no seu cotidiano, extraindo-lhe toda possibilidade de introspecção e contato com a mais profunda essência humana.
Se estivéssemos expostos a apenas uma dessas inúmeras influências, não haveria grandes problemas. Mas estamos submetidos a todas simultaneamente, em interação sinérgica negativa, com resultados devastadores sobre as capacidades de atenção, concentração e retenção, e sobre a consciência.
Além disso, as drogas virtuais e as drogas substanciais (lícitas ou ilícitas) andam juntas: umas pedem as outras, e se realimentam reciprocamente.
Um infindável mundo de distrações
Hoje todos os bens de consumo são projetados com base no conceito de obsolescência programada (desenvolvido por interesses comerciais durante a grande depressão de 1929), para que tenham vida útil limitada e levem aos maiores dispêndios possíveis durante o tempo de utilização (repostos descartáveis ao invés de laváveis, manutenção frequente e cara, peças avulsas a preços extorsivos etc.).
Assim, os bens de consumo na verdade são armadilhas, que ocultam toda sorte de subterfúgios para nos fazer gastar durante a sua vida útil cada vez mais curta. Por isso, todo santo dia há alguma coisa quebrando dentro de casa e demandando atenção e dinheiro: um dia é a máquina de lavar, outro dia é o ferro de passar, depois o aparelho de som, a televisão etc., etc., etc., e isso não tem fim…
Também faz parte do conceito de obsolescência programada lançar novos modelos em curto espaço de tempo, para estimular a troca, que em boa parte das vezes ocorre sem real necessidade. Em geral, o produto novo tem design mais atrativo e é mais caro, porém a qualidade intrínseca é inferior.
Além de tudo isso, que já seria suficiente para nos manter atarefados, a tecnologia contemporânea tem inventado assombrosa quantidade de dispositivos eletrônicos que atraem e mantêm a atenção do usuário para fora de si, consumindo no mundo exterior toda a disponibilidade perceptiva: telefones celulares; computadores, nas mais diversas apresentações; televisores; aparelhos de som; jogos eletrônicos; etc., etc., etc.
O telefone celular
Dispor de telefone celular é a maneira mais efetiva de estimular a própria ansiedade, como também de ficar à mercê da ansiedade alheia.
No passado, já foi comum portar revólveres para se defender… do julgamento dos outros! Quando os celulares eram poucos e bem maiores, os usuários costumavam desfilar garbosamente com eles à cintura, como se fossem os revólveres de outros tempos. Hoje, faz-se o mesmo tendo os celulares sempre à mão.
Depois do advento da telefonia celular, ninguém planeja nada, ninguém faz prospectiva de seu dia antes de sair de casa etc., a pretexto de que, havendo problemas, pode-se recorrer ao celular. Isto nos está condenando a viver sempre em emergência, apagando incêndios.
E haja dinheiro para custear tanta conversa fiada! Há situações em que o celular é de fato útil e necessário, mas isso talvez represente 20% de todas as utilizações. O resto é distração!
Já chegamos ao ponto de enfermidade social, em que as pessoas se reúnem não para interagir entre si, mas para interagir com seus próprios dispositivos portáteis, e, embora fisicamente presentes, ficam enviando coisas uns aos outros, ao invés de conversar.
Como se não bastasse, o celular também é agente predisponente de enfermidades cerebrais. Para que a tecnologia que o viabiliza funcione, a emissão de micro-ondas precisa ter intensidade mil vezes superior ao nível de inocuidade a seres vivos.
O computador
Por trás da aparência de libertação, o computador ata-nos decisivamente ao mundo inanimado. Os organismos vivos existem no campo da simultaneidade; o computador opera no campo da sucessividade, criando a ilusão de simultaneidade devido à velocidade com que executa uma tarefa após a outra, mas na verdade nos afasta do biológico, do vital e do que nos pode proporcionar genuíno bem-estar.
O computador é instrumento, ferramenta. Por isso, o que ocorre a boa parte dos usuários é surreal: gastam mais tempo para fazê-lo funcionar a contento do que o utilizando produtivamente para algum fim. Tudo devido a interesses comerciais, pois a informática é o ponto culminante da obsolescência programada.
Ademais, do ponto de vista organizacional, a informática prometeu nos libertar da rotina, das atividades repetitivas, porém apenas aumentou a quantidade de trabalho geral. Observe: sempre que algum serviço é informatizado, todos os ônus são transferidos ao usuário, e este passa a responder pelo bom andamento do serviço. Isso é muito nítido no caso do imposto de renda, mas o mesmo fenômeno ocorre em toda informatização de serviços, sejam públicos ou privados.
O e-mail deveria facilitar o dia a dia, mas quando se trata de algo importante é preciso também telefonar, pois há inúmeros motivos para o e-mail não chegar ao destino. Ou seja, trabalho dobrado! A mania de reenviar e-mails para todo o mailing, mandar tudo para todos, indica falta de discernimento e exaure a disponibilidade geral. Ora, cada um de nós tem inúmeros interlocutores, e, se toda semana recebemos algo de cada um deles, não fazemos nada além de gerenciar e-mails.
Os programas instalados no computador sempre atuam como se fossem o único, tentando monopolizar a atenção do usuário com todo tipo de subterfúgios. Isso sem falar nas atualizações on line, que não raro provocam problemas inesperados e são caminho de duas mãos: o usuário baixa a atualização desejada, mas também tem o seu computador devassado, não importa o que se diga em contrário no contrato de adesão aceito quando da instalação do programa. Talvez a informação assim obtida não se torne pública, porém deixou de ser privada. A espionagem internacional de que o Brasil tem sido vítima, agora em destaque na mídia, também se serve desta via para obter informações.
O abuso de internet já registra casos de internações hospitalares: indivíduos que ficam conectados continuamente dias seguidos, até a completa exaustão física e mental. Se isso não for dependência, então o que é?
Por fim, a questão das redes sociais: por que alguém há de imaginar que as situações mais triviais de seu cotidiano possam interessar aos demais? E por que você haveria de se interessar por tudo o que se passa aos outros? A comparação é sempre problemática. Por que não se comparar a si mesmo em outro momento, para avaliar a própria evolução, ao invés de ficar olhando para os lados? Comparar-se aos outros não serve para nada, pois os parâmetros são distintos. Nas redes sociais ninguém mostra a sua totalidade, necessariamente dual. Basta observar os falsos sorrisos, vistos em todas as fotos, pois ali ninguém tem problemas, todos vivem em permanente mar de rosas. Portanto, as amostras ali obtidas são irreais, não servem como modelo para comparação. Mas o problema maior não é esse, e sim o fato de a rede social consumir toda a disponibilidade de atenção dos usuários.
A televisão
Com as raras e honrosas exceções de praxe, entre as quais menciono a TV Cultura de São Paulo (ressalvando que esta já foi bem melhor, antes da invasão dos “enlatados”), a televisão despeja lixo dentro de casa o tempo todo, mesmo na versão por assinatura, e, por isso, a disposição generalizada de pagar por ela é surpreendente, consumindo valioso tempo que poderia ser destinado a outras atividades e à introspecção.
É sem dúvida deliberada a opção das mídias em mostrar doses maciças de violência, tragédia e futilidade, como forma de deixar a população continuamente em estado de choque, anestesiada. Eu diria que é até mais do que opção deliberada: faz parte de um planejamento estratégico, que infelizmente não nos contempla!
Anos atrás, o Instituto Alana (www.alana.org.br ou www.institutoalana.com.br) costumava promover a “Semana do Desligue a TV”. Mais do que buscar programação de melhor qualidade, o objetivo da campanha era buscar alternativas à própria televisão. Recomendo decisivamente a adesão a qualquer proposta semelhante, pois se trata de exercício conducente à percepção de que a televisão é eletrodoméstico supérfluo, da qual se pode abrir mão parcial ou totalmente, sem maiores prejuízos ao que é de fato essencial para a existência humana. Porém, a grande maioria das pessoas vê a empreitada como desesperadora, porque simplesmente não tem o que pôr no lugar.
A TV também se transformou em epidemia, pois não se vai a parte alguma onde não haja televisão ligada. É impossível conversar ou se concentrar, pois ela está sempre por perto, monopolizando a atenção como se fosse a protagonista da vida.
Os aparelhos de som
Uma das formas epidêmicas de drogas virtuais é a poluição sonora. No mundo atual, com o barateamento dos aparelhos de som e amplificadores, abusa-se da intensidade sonora em toda parte, e frequentemente é do próprio poder público que vem o mau exemplo, transformando-a em padrão de comportamento.
Como é possível suportar esses excessos? Única e exclusivamente pelo embotamento generalizado da capacidade auditiva, em virtude da exposição continuada a níveis sonoros absurdos desde a infância.
Seria cômico, se não fosse trágico, mas é frequente observar eventos que em tese visam promover a ecologia e a vida saudável, e no entanto fazem uso de poluição sonora… É a dicotomia entre discurso e ação, hoje presente na maioria das atividades humanas, tornando a população insensível às incoerências viscerais que a cercam.
Mas ainda há mais.
O desenvolvimento de inúmeros dispositivos sonoros portáteis viabilizou o mau hábito contemporâneo de ouvir música o tempo todo, tendo-a sempre como fundo para qualquer atividade.
É igualmente droga virtual epidêmica e compromete diversas funções cognitivas, além de também prejudicar a audição quando a intensidade sonora é elevada ou habitualmente se utilizam fones de ouvido. Usada para se alienar de um mundo sem sentido, inumano, incoerente, ilógico e predatório, não contribui para que essa realidade se modifique.
Esse costume também está na raiz da exposição passiva à poluição sonora.
Apenas como perspectiva histórica, precisamos lembrar que, antes de se tornar possível a gravação de sons, a única forma de ouvir música era ao vivo, seja observando outros a tocar, seja tocando algum instrumento. A formação musical era então generalizada e fazia parte da educação básica. Como hoje isso não ocorre, o indivíduo aceita passivamente qualquer coisa imposta pela mídia e reproduzida à exaustão, pois não tem referenciais para avaliá-la.
Jogos eletrônicos
Vício. Essa é a palavra adequada para falar de jogos eletrônicos.
A grande maioria deles gira em torno de armas, guerras e de algum tipo de violência, e sempre em doses maciças. As crianças crescem se divertindo diariamente com essas tragédias virtuais, e é previsível que se tornem insensíveis a qualquer coisa semelhante ocorrendo na realidade circunstante.
Há alguns anos foi oficialmente proibido (mas no mercado negro era encontrado facilmente) um jogo em que o usuário dirigia carros e ganhava pontos diferenciados, conforme o tipo de vítima dos atropelamentos que fazia: crianças, deficientes e idosos valiam mais. Imagine um jovem que cresceu como ás nesse jogo e um dia tem um carro de verdade nas mãos. Acrescente generosas doses de álcool e aí temos os atropelamentos provocados diariamente por motoristas bêbados.
Depois de demorada sessão de jogos eletrônicos, é pouco provável que a criança consiga estudar ou se concentrar no que quer que seja. E então, os estudos nesse dia já eram… Quando muito, vai ligar o computador (se já não estiver jogando nele) e usar a função recortar e colar para preparar alguma lição de casa, sem necessidade de ler coisa alguma.
A criança exposta a jogos simulando guerras, e/ou gravitando em torno de armas, cresce com a convicção, ainda que inconsciente, de que os gastos em armamentos sempre se justificam, como se fossem fins em si mesmos. E deixa de desenvolver a consciência de que, por exemplo, o dinheiro colocado em um único armamento mais sofisticado poderia suprir todas as carências materiais da comunidade em que vive.
O gasto anual global em armamentos já atingia, em 2007, a fabulosa cifra de US$1,5 trilhão, o que dá e sobra para influenciar o conteúdo editorial de qualquer meio de comunicação ou o mix de produtos de qualquer negócio, seja por meio de verbas de marketing formais ou informais, ou ainda por meio de participação não detectável nas empresas. De maneira que as armas e a violência estão presentes em grande variedade de diversões infantis, dos brinquedos mais simples aos jogos eletrônicos.
Aos pais, é necessário observar a que os filhos estão expostos e intervir criticamente, seja para fornecer parâmetros, seja para conter excessos. Pois, como diz o escritor Mário Prata, “filho é bom, mas dura muito tempo”. Dura, salvo inversão da lei natural, por toda a vida dos pais. Então, a falta de direcionamento adequado aos filhos, hoje, é a certeza de sarna para se coçar, amanhã…
O Instituto Alana, já mencionado no tópico sobre a televisão, também desenvolve reconhecido trabalho visando a proteção infantil frente ao consumo desenfreado. E dispõe de vasta literatura a respeito. Vale a pena conhecer. Acesse www.alana.org.br ou www.institutoalana.com.br.
O excesso de distração rouba tempo da leitura, atividade essencialmente introspectiva
É triste notar que no Brasil é muito raro ver alguém lendo, seja em filas, salas de espera, na praia etc., enquanto na Argentina, por exemplo, ocorre exatamente o contrário. Como diz com muita propriedade o secretário de cultura de Avaré, Gílson Câmara Filgueiras, a falta de leitura é enfermidade, doença. E ouso acrescentar que o país já está na UTI (unidade de terapia intensiva) pela doença da falta de leitura em estado avançado.
Cada nova tecnologia incorporada à rotina inibe uma faculdade humana e provoca dependência
Convém salientar, enfaticamente, que cada nova tecnologia incorporada à rotina implica na inibição de alguma faculdade humana, gerando dependência à tecnologia.
Certa vez, fui ao supermercado para a minha avó materna e vi alguém utilizando o celular para fazer as compras. Ia percorrendo as prateleiras, falava o que via, e o interlocutor lhe dizia o que queria. Eu dispunha apenas da prosaica lista elaborada pela minha avó, mas às vezes ela não mencionava algo que habitualmente pedia, e muitas vezes eu o comprava. Em boa parte dessas vezes, na volta ela me dizia: “que bom que você trouxe isso, pois esqueci de marcar e fiquei aqui pensando para que você lembrasse”. Com o uso corriqueiro do celular, esse tipo de comunicação deixará de ser exercitada e fenecerá, até ser redescoberta em outro momento histórico sem tal disponibilidade tecnológica…
Conclusão
Se a coletividade inteira simultaneamente faz uso de drogas, jamais ocorrem mudanças viscerais. Por isso, em virtude de sua importância, repito aqui o tópico O cerne da questão, agora ampliado para abranger também as drogas virtuais:
A partir do momento em que o indivíduo lança mão de substâncias – sejam lícitas ou ilícitas – e/ou atividades para suportar circunstâncias de vida adversas, opressivas, sem sentido e pouco significativas, deixa de atuar para modificar essas situações, que, em virtude da inação, vão se tornando cada vez piores e exigindo mais e mais doses das substâncias ou tempo das atividades para serem suportadas, até que estas não mais fazem efeito e o usuário tem de buscar um upgrade, num crescente sem fim para obstar o contato com as percepções interiores, que sinalizam desconforto. Esse processo necessariamente desemboca nas drogas ilícitas.
Se cada um, no âmbito individual, procurar modificar as circunstâncias que o oprimem em seu entorno (aquelas que lhe são próximas, cotidianas, e que estão a seu alcance, passíveis de receber intervenção), ao invés de suportá-las recorrendo à muleta das drogas substanciais ou virtuais, haverá transformação qualitativa sem precedentes no mundo, e de forma pacífica, portanto sem armas e violência.
Conforme ensina o psiquiatra Paulo Gaudêncio, ao contrário do senso comum, a violência não decorre do excesso de agressividade, mas da falta do exercício da agressividade no momento oportuno. A agressividade é a pulsão que nos permite colocar limites e preservar o espaço vital.
Quando fazemos uso de drogas, temos inibida a percepção dos abusos cometidos contra nós, e por isso deixamos de exercer a agressividade que nos poderia proteger, fazendo com que se acumule e, por fim, exploda na forma de violência.
O segredo é começar a se defender quando a opressão ainda é incipiente, antes que adquira massa crítica em virtude da inação. E isso requer percepção e consciência lúcidas, portanto livres da influência das drogas.
Nesta vida só há uma revolução realmente possível: a da consciência!
Avaré, em outubro de 2013.
ANTONIO SILVIO CURIATI. Advogado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com cursos em Economia e Gestão pela Universidade do Porto (Portugal), Desenvolvimento Gerencial pelo Instituto Stand Out., Análise Transacional e Pedagogia Social, entre outros. Experiência profissional nas áreas de marketing, administrativa, político-institucional e jurídica, atuando como advogado e consultor em desenvolvimento humano e organizacional.
O texto foi publicado originalmente no Suplemento Poético do Centro Literário Anita Ferreira De Maria, da Secretaria Municipal de Cultura de Avaré – SP.
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