O tempo não tem começo nem fim, é eterno e infinito, e portanto tudo já aconteceu e acontecerá de novo
Nietzsche foi um filósofo que pensou e escreveu coisas extraordinárias, muito duras. Fugia dos contatos, arrastava atrás de si um enorme baú com seus livros, roupas, pouca coisa mais. E procurava o ar frio, bom para a saúde frágil. Punha sua mesa de frente para o sol e saía, andarilho. Na volta anotava impressões e ideias, quando ficava satisfeito as organizava em aforismos, pequenos capítulos, poemas, e tinha um livro. Publicava-os e ninguém os lia, nem comentava. Sentiam medo do solitário violento.
Um dia, caminhando nas montanhas da Suíça, teve o que chamou sua “ideia mais pesada”: o tempo não tem começo nem fim, é eterno e infinito, e portanto tudo já aconteceu e acontecerá de novo. Na mesma ordem. Igual. Chamou a essa ideia o Eterno Retorno do Mesmo. Não escreveu o livro do Eterno Retorno. Deixou duas ou três pistas. Até hoje especulamos sobre elas. Com sofrimento. É pesado demais aceitar que o futuro é o mesmo que o passado. Eternamente igual.
Nietzsche naturalmente via outra coisa na sua ideia. Tinha escapado da maldição, que a filosofia foi adquirindo ao longo dos séculos, de fazer sistemas cheios de rigor lógico, mas longe da vida. Como Sócrates, que odiava do fundo das entranhas, sabia que a filosofia deve servir à vida — ou ficar quieta e não atrapalhar a potência de viver. Pensava que os valores, criados por Sócrates, do bom, do belo, do justo e do verdadeiro foram uma conspiração da filosofia, da moral e da religião para julgarem e condenarem a vida, sua força afirmadora e livre. No seu século XIX essa força teria chegado ao máximo da sua humilhação. Ao fundo do poço: o último homem, o homem que deseja morrer, a vontade de nada, o nada de vontade, assim o chamou. Desespero e desesperança.
Mas no dia do passeio na montanha teve essa ideia: no fundo do poço não se encontra a morte; se não é possível cair mais, essa é a hora de saltar para o recomeço. Tudo de novo. Com o que a vida teve de bom e o que sofreu de mau. Pois a vida verdadeira está além da oposição entre bem e mal. É maior do que isso. É pura afirmação da sua própria força.
No livro “Aurora” ele nos deixou uma pista sobre o Eterno Retorno. Se um demônio — por que não o da meia-noite, quando um dia termina e outro começa no mesmo fulgurante instante, e não há, ainda, ontem nem amanhã — se introduzisse no seu sonho e perguntasse: — Você quer tudo de novo, e na mesma ordem? — ele responderia: — Sim! E desse modo desejaria todo o passado. Pois fácil, pensou então, é desejar o futuro; querer de volta tudo o que foi, sem julgamentos nem seleções, é amar a vida além de bem e mal. É dizer um “Sim!” soberano à vida. Deixar de ser demasiado humano, como o camelo que carrega nas corcovas todos os pesos da submissão. Ir para o deserto, como o leão, urrar pela liberdade. E depois tornar-se a criança, que está na pura inocência do tempo. Sem medo. Assim ele pensou, e havia nesse pensar a esperança da vida forte de uma Humanidade transfigurada pela paixão dionisíaca, pela desmesura e pelo excesso, que ele opunha à força apolínea, toda feita de contenções e limites, mestra dos julgamentos. Dionísio era o deus grego da ebriedade. Apolo era o da luz. O Sol, que faz luz e sombra, põe uns na claridade, outros, empurra para as trevas. Nietzsche era dionisíaco. Pensava a vida como um transbordamento de força e criação. E queria protegê-la das condenações apolíneas, cheias de desdenhosa superioridade. Sua ideia, tão pesada e difícil, do Eterno Retorno era para isso que servia: ensinar aos homens a esperança. Os homens tinham medo. Evitavam ouvi-lo.
Um dia, em Turim, viu um cavalo ser violentamente espancado. Identificou naquele corpo poderoso e belo, assim supliciado, a própria força da vida humilhada até a baba e o sangue. Agarrou-se ao animal, defendeu-o e perdeu os sentidos. E a razão. Nunca a recuperou. Ensombreceu numa loucura mansa. Viveu quase 10 anos assim. E foi quando seus livros começaram a ser lidos. Ficou famoso. Não soube disso. Nem era a fama que lhe importava. Era a força da vida. Ele fora derrubado pelo chicote do torturador da vida, mas não renunciara à sua defesa. A loucura, como, tanto tempo antes, a morte para Sócrates, era um preço justo para não abrir mão do mais valioso.
Hoje, por aqui, parece que vemos um sol se pôr e lamentamos a escuridão. Porque a História acabou, dizem, e não há mais futuro e sonho. Enganam-se. Amanhã haverá sol, e os tenebrosos se espantarão. O tempo dos sonhos voltará. Nietzsche pode ter pensado coisas estranhas, mas nessa teve razão: o tempo não acaba para aqueles que amam a vida acima de ponderações e conveniências. E estão dispostos a alucinar, encher-se de luz por ela.
Esse pode ser hoje um bom nome para a esperança. Que retorna sempre. Mais forte ainda quando o mundo escureceu.
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